- Vó?
- Oi?
- Por que as pessoas sempre dizem que estão sem tempo?
A Vovó sabia muito bem que aquilo era uma alusão a uma queixa
muito freqüente do pai de sua neta, seu genro, que, segundo ele,
estava
sempre "muito sem tempo" mas era capaz de ficar horas na frente de uma TV na tarde de Domingo.
- As pessoas têm muitos problemas com o tempo, meu bem...
- Como assim?
- As pessoas estão sempre brigando com o tempo, minha querida. Parecem-se
com aquele coelho de Alice:
étarde, é tarde, é muito
tarde...
- E por que estão sempre correndo atrás do tempo?
- Parece que estão correndo atrás mas, na verdade,
estão
fugindo do tempo, meu bem...
A menina fez um muxoxo. Estava entendendo cada vez
menos aquela história.
- Vou contar uma historinha para te ajudar
a entender esse assunto, tá bom?
- Oba!
- Era uma vez um Reino onde o tempo saiu dos eixos.
- Como assim?
- É como se o tempo rodasse em cima de um eixo de roda.
De repente,
o senhor do Tempo deu uma pequena cochilada
e o tempo começou a sair
do seu eixo principal. As pessoas do Reino, a princípio, não
perceberam o que ocorria, mas
com o tempo girando em falso no seu eixo, não
demoraram
a acontecer algumas coisas estranhas.
- O que aconteceu?
- Um profeta maluco subiu até o alto de maior montanha e gritou:
O
Senhor do Tempo está morto!
O senhor do Tempo está morto!
- E o que aconteceu com as pessoas?
- Elas começaram a se comportar de forma muito estranha: algumas pessoas
passaram a viver do passado, outras começaram a tentar controlar o
futuro. As pessoas que adoravam o passado, começaram a se reunir para
trocar suas histórias. Como elas tinham chegado até ali? Quem
era o culpado pela sua infelicidade? Elas descobriram que seus pais estavam
errados, os homens estavam errados, as mulheres estavam erradas, os governantes
estavam errados. Todos estavam muito errados e, no Passado, estavam os culpados
pelas coisas ruins que acontecem no dia de hoje. Presidentes poderiam jogar
bombas em um país indefeso cheio de pessoas ignorantes, para depois
dizer que tinham sofrido abuso de uma tia desequilibrada, que nunca deixou-os
ganhar o seu pônei! Como eles não tinham conseguido o seu pônei,
então agora precisavam comandar várias ogivas nucleares e várias
bombas que, às vezes, caíam em cidades cheias de crianças
inocentes, e aí eles falavam: desculpe, foi mal, erramos... As pessoas
que viviam de passado fundaram uma Sociedade de Vítimas, e passaram
a fazer ações de milhões e milhões
de dólares
para punir os culpados.
- E quem eram os culpados?
- Qualquer um, desde que tivesse muita grana.
- E os controladores do Futuro?
- Esses eram ainda piores. Como o cochilo do Senhor do Tempo parecia muito
demorado, os controladores do futuro passaram a ditar
as regras de como as
pessoas deveriam experimentar o tempo.
Os caras fundaram o Partido dos Donos
do Amanhã, e passaram a dizer para todo mundo como seria o dia de amanhã.
- E como seria o dia de amanhã para eles?
- Isso não importa muito. O que realmente importava é que o
dia de amanhã fosse sempre muito ruim: vai faltar emprego, vai faltar
comida, vai faltar luz elétrica, preparem-se para
o pior, o bicho papão
está sempre pronto para te pegar.
As pessoas daquele reino que passaram a obedecer os donos do amanhã,
começaram então a ficar com muitos medos:
medo de perder o emprego,
medo de ficar sem a TV a cabo, medo de sofrer algum tipo de violência
da parte do bicho papão da semana.
- E o que é o bicho papão da semana?
- É o vilão da semana, o cara que entraria como bicho papão
para aterrorizar a moçada. Numa semana era o dragão da Inflação,
na outra era do desemprego, na outra a Violência urbana. Os Donos do
Amanhã tomaram posse das rádios, da TV e dos jornais para dominarem
o amanhã por medo do amanhã. Você entendeu?
- Entendi e conheço um reino muito parecido com esse...
- Porque você é uma menina muito, muito esperta...
Aliás,
foi uma menina como você que começou a mudar
as coisas naquele
estranho reino.
- Como assim?
- Uma menina da sua idade começou a fazer perguntas para os velhinhos,
que estavam à margem de toda aquela bagunça.
- Por que os velhinhos estavam à margem de tudo?
- Porque eles sabiam que não adiantava entrar para o Partido das Vítimas,
pois logo ouviriam: é mais um velhinho se fazendo de vítima.
Nem adiantava entrar para os Donos do Amanhã, porque eles achavam que
as pessoas com mais de quarenta anos, já eram muito velhas, imagine
os velhinhos mesmo! Para eles, não tinha amanhã.
- Coitados.
- Coitados nada. Por não poder ficar naquela bobagem de recuperar erros
passados, ou fuxicar no futuro, os velhinhos descobriram uma coisa muito boa,
e ensinaram para a menina.
- O que eles ensinaram para ela?
- Ensinaram a brincar de Não-Tempo.
- E como é que se brinca de Não-Tempo?
- É um jogo assim: pegue as coisas mais inúteis que existem
na sua casa: uma máquina de escrever, por exemplo.
- E aí?
- Aí, você brinca de desescrever um livro. Depois, você
pega uma bola furada e começa a não fazer gols com ela. Depois,
você pega outra bola e joga para seu cachorrinho que vai trazê-la
de volta, e aí você joga uma bola invisível e brinca de procurá-la
durante muito tempo.
A menina olhou com cara de que estava ouvindo bobagem.
A Vovó, claro,
percebeu.
- Aquela menina, ao contrário de você, gostou da brincadeira,
e saiu ensinando as pessoas de sua escola a brincar de não tempo. Isso
causou um certo problema, porque as crianças já estavam muito
agendadas: tinham aula de Inglês, Francês, Alemão, Judô,
Caratê, Expressão Artística, Computação
Gráfica, Física Nuclear e, claro, aulas de Técnicas de
Gerenciamento do Tempo, para Uma Brilhante Carreira Amanhã. Como elas
começaram a brincar de não tempo, não dava tempo para
ir à nenhuma dessas atividades. Os Donos do Amanhã se preocuparam;
o que vai ser do futuro dessas crianças sem um Mestrado aos doze anos?
Mas, como uma epidemia, as crianças e os velhos começaram a
brincar de não tempo, e estranhamente, sem atropelo ou dúvidas,
conseguiam fazer tudo. Era incrível como o tempo rendia para aquelas
pessoas! As crianças conseguiam estudar, fazer lição
de casa e se dedicarem a sua profissão, que é serem crianças.
Os velhinhos passaram a ser consultados e, como uma epidemia, as pessoas começaram
a parar de querer, querer, querer... Planejar, planejar, planejar. Os profetas
do Amanhã gritavam: Mãos à Obra! Aprendam a trabalhar
sob Pressão! Produzam, produzam, produzam ou morram! Mas ninguém
mais estava ouvindo, porque a televisão já estava mostrando
a famosa receita do bolo de amora de uma Vovó como eu, e ninguém
queria perder as horas que levavam para o bolo ficar pronto. Finalmente foi
fundado um novo partido, o Partido do Presente, mas só podia entrar
no partido quem não tentasse controlar nem o Passado, nem o Futuro.
Ninguém mais viu o Coelho de Alice correndo atrás do tempo depois
daquele dia.
- Mas, e o senhor do Tempo?
- O que é que tem?
- Não acordou do seu sono?
- Acordou e achou muita graça de tudo.
Só que notou algo muito
estranho...
- O que?
- O Tempo tinha voltado sozinho para o seu Eixo.
A menina fez menção de perguntar mais alguma coisa, mas percebeu
as mãos cheias de nós da vovó fazendo o tricô de
uma malha. Fez menção de lembrá-la que o inverno já
se virava em Primavera e, portanto, aquela malha não teria utilidade.
Quando foi abrir a boca, subitamente
interrompeu a frase e se calou.
- Você ia dizer alguma coisa, meu bem?
- Nada não, Vó. Nada não.
- Onde você está indo?
- Vou brincar de pegar borboleta sem rede.
A Vovó sorriu, e seu sorriso estava empapuçado de Tempo.
Marco Antonio Spinelli
(médico psiquiatra e psicoterapeuta,
coordenador clínico da
Hormê - Psiquiatria e Psicoterapia Junguianas)
E-mail: horme@uol.com.br